sexta-feira, dezembro 5

As Sapatilhas de Luísa.

Luísa gostava de fechar os olhos ao fazer xixi, apreciava os homens e não se importava com a tampa do vaso em pé.
Luísa odiava gatos, e desprezava as mulheres que, por estarem tristes, comiam barras e barras de chocolate.
Por enquanto é tudo que precisam saber.


Ao abrir os olhos, Luísa se deparou com Almodóvar, seu dálmata. Ele a fitava com olhar de desespero. Já passava das três e sua bexiga devia estar lotada de um líquido amarelo e que ao sair ficaria avermelhado ao se juntar ao sangue da velhice. Almodóvar estava em seus últimos anos e Luísa não gostava de enfrentar tal realidade.
Foi à cozinha, preparou seu café. O tempo passara rápido ou lento demais. Não sabia como fora parar em casa. Lembrava-se de estar numa boate e de enfiar a taça em seus pés ao procurar suas sandálias. Depois disso, tudo era escuridão.
Suas mãos cheiravam a pimentão. Não sabia o motivo.


Almodóvar com suas pintas abanava o rabo a espera de sua dona confusamente sóbria.
Colocou a coleira, botou suas havaianas e foram à porta. Ao abri-la, havia um pacote no chão, mais como uma caixa, esperando para ser aberto.
Luísa estranhou, não havia bilhete algum. Pensou se era mesmo para ela. Mas ao virar a caixa, leu: Para Luísa, não deixe suas idéias escaparem, fique de pé.
Não havia muitas Luísas naquele mundo. Além da de Chico Buarque, umas cinco ou seis (?). Pelo menos nenhuma havia naquele prédio. Se era por mim que aquela pessoa saía do tom, que viesse.


Entrei novamente no apartamento, para desespero de Almodóvar, sentei-me na ponta da cama e comecei a abrir o pacote. Ao retirar o papel bege que a cobria, descobri outro, só que roxo, e de crepom. Amava roxo, e a pessoa que me mandara tal pacote, que eu ainda não sabia o que era, sabia disso.


Confuso. Luísa sou eu? Não sei mais dizer, em primeira pessoa ou em terceira, você que deverá saber.


Luísa abriu por fim a caixa. Dentro, encontrava-se um par de sapatilhas vermelhas com um laço em cada ponta. Era o meu número. Impossível, a pessoa me conhecia. Fiquei sentada na cama desarrumada pensando e procurando algum indício de quem teria me mandado aquilo.


Confusos estão? Eu estava mais.


Resolvi calçá-las. Couberam como o esperado. Não havia nada de errado nelas. Fitei-as por mais um tempo. Pareciam hipnotizar minha atenção. Sentia minha respiração, a ouvia com perfeita nitidez, analisava todas as curvas da sapatilha. Já gostava dela, mesmo não sabendo nada de suas origens. Via, no plano de fundo das sapatilhas, uma imagem peluda preta e branco se movendo. Era Almodóvar, já impaciente e latindo sem parar. Consegui sair do transe, não ouvia os latidos, que pela cara de Almodóvar pareciam estar ali há muito tempo tentando chamar minha atenção.
Levantei correndo reparando no que estava para acontecer. Não queria limpar urina de cachorro. Levei-o até a porta e fomos ao corredor. O elevador estava a minha espera. Abri a grade, já meio enferrujada, e entrei. Almodóvar olhava furioso para mim, com meus olhos de jabuticaba pedia desculpas. Ele parecia não entender. Parecia não reconhecer quem estava ao seu lado.


Era eu? Ou era Luísa? Luísa sou eu? Ou eu sou Luísa?


Pisaram no asfalto e Almodóvar soltou um gemido de alívio. Eu também, me sentia meio claustrofóbica no elevador.
Fomos em direção à Lagoa. Eram confortáveis, as sapatilhas. Sua cor ofuscava meus olhos. Mas Almodóvar estava com toda a atenção em mim, e não em meus pés. Por algum motivo ele sentia que algo estava diferente. E estava mesmo.


Luísa já não sabia ser Luísa.


Estava tentando entender o mecanismo daquilo. Olhava insistentemente para as sapatilhas. Por que ao calçá-la ela se sentia tão diferente? A vida dela era tão pacata a ponto de algo assim mudar tudo?


Hoje era domingo, hoje era domingo, hoje era domingo?


Voltou para casa. Esse personagem maldito que já não podemos mais chamar de Luísa. A cada passo, a cada dúvida, a cada suspiro Luísa deixou de ser Luísa. Luísa era uma identidade nua. Não nua totalmente, apenas pelas sapatilhas vermelhas em seus pés. Mas não tinha nada a esconder. Só os seus dedões, dos quais nunca gostou. Luísa era agora um ser livre. Um ser. Inteiro, vazio, cheio.
Almodóvar não a reconhecia. Como ao ganhar um presente silencioso alguém é capaz de mudar tanto? Luísa ainda não sabia se estava gostando de tal mudança. Luísa gostava era de se sentir nova. Nua, como um feto que surge no mundo. Ética, agora, era diferente (indiferente?) para ela.


Às vezes Luísa queria voltar a ser Luísa. Mas isso envolvia tanta burocracia que na primeira tentativa de tirar as sapatilhas, Luísa caía ao chão e sorria para os laços, enquanto ficavam mais apertados e sentia dor. Luísa abraçava a dor e sorria. Seus braços não precisavam mais sangrar. Logo, logo eles voltariam a ser macios e sem rachaduras. Nenhum líquido viscoso sairia de suas entranhas. Não teria um primeiro a enfiar a faca.


Seus olhos agora eram transparentes. Nem verdes, nem azuis, nem de jabuticaba, nem carmim. E sim, transparentes. Almodóvar jazia morto no canto da sala. Seus peitos precisavam ser lavados. Seu cabelo, longo como nunca, oleoso. Seus dentes amarelados sorriam para os laços que não a desenlaçavam. Suas unhas davam voltas e voltas pelos dedos, rachadas. Rachadas como sua vida. Sua nova velha vida.

Um dia, Luísa cortou um dos laços. O papel descascado da parede votou ao seu lugar. Ao cortar o outro laço, Luísa viu que as sapatilhas já estavam grandes demais para seus pequenos pés. Luísa viu que era hora de se vestir.
Foi até a cozinha, pegou uma faca. Foi até o canto da sala e começou a fazer um fino corte em Almodóvar. Ao terminar todo o procedimento, Luísa se envolveu com a pele pintada de seu antigo cachorro. Agora olhava para seus pés, impecavelmente limpos. Gotas de sangue começaram a despencar. Luísa olhou para o espelho, e o sangue não era da pele de sua roupa, era de seus olhos. Luísa chorava sangue. Foi quando percebeu que as sapatilhas simbolizavam o seu, e o de todos, lado Z. O lado verdadeiro e humano e maléfico e puro que todos têm, mas se vestem com mentiras.


Luísa já não sabia ser Luísa.
Luísa agora era luísa.

4 comentários:

.luísa pollo disse...

há no mínimo três Luísas aí..

João Medeiros disse...

Existe um certo desafio implícito em falar de transformação - que é uma imagem da morte - mas o melhor tipo de arte é a violenta; não pelo conteúdo, mas pela execução.. E quantas identidades podem se esconder sob um único nome? Quantos tons podem ser chamados de azuis - Quantas mulheres de Luísa - ou até mesmo Luísa Pollo?

Lucas disse...

E talvez uma Luisa, sem acento.

Sr. Despedaça Corações disse...

E qual dessas Luísas eu conquistarei primeiro?